ISSN 2764-8494

ACESSE

Artes
Seu tempo de leitura: 7 minutos

A Chama e as Histórias

A Chama

A descoberta do fogo revolucionou a existência humana. Ao dominar esse elemento tão fundamental à vida, nossos antepassados passaram de um estado permanente de alerta e luta pela sobrevivência à possibilidade de fruir – em alguma medida – o dia a dia. Tornou-se possível se aquecer, afastar predadores, cozinhar os alimentos e ter excedentes. Mais bem alimentados e seguros, a vida ganhou outras nuances e o cérebro humano se desenvolveu.

Antigos Xamãs acreditavam que, para que seus espíritos pudessem viajar pelo mundo dos encantados e dos sonhos, era preciso manter seus corpos aquecidos. Por isso, enquanto empreendiam tais viagens em busca de respostas para as questões das vidas terrenas, o fogo deveria ser alimentado, de forma que não se apagasse, garantindo assim a segurança do espírito – corpo viajante.

Portanto, para além das questões cotidianas relacionadas à vida prática e à sobrevivência, o fogo possui um aspecto mágico, misterioso e simbólico. O que o torna ainda mais fascinante. Por isso, acredito que, desde o tempo antes do tempo, essa mesma “chama que queima a madeira nos lembra também sobre o mistério que habita em tudo que vive.” (COSTA, 2022, p. 09)

Fogueira
foto: Renato Mangolin

As Histórias

Os seres humanos são animais coletivos. Para sobreviver sempre foi necessário estarmos em bando e até hoje é assim, penso eu. Desde que dominamos o fogo e passamos a cozinhar os alimentos, o tempo de preparo, a espera pela refeição que está por vir, tornou-se um momento de encontro.

O fogo possui, ainda, essa dimensão de comunhão. Nos reunimos ao redor das chamas para aguardar a comida que irá nutrir o corpo e, enquanto isso, alimentamos nossas almas no encontro com o outro.

Acredita-se que tenha sido assim, ao redor do fogo, o surgimento dos primeiros traços da linguagem. Ao redor da fogueira, nesse ambiente de troca, escuta e olho no olho, aprendemos a compartilhar experiências – seja para ensinar ou para entreter –, descobrimos que era possível provocar o riso, o medo, o encantamento. Desenvolvemos nossas capacidades sociais e de comunicação.

Ao longo dos tempos, seres humanos ao redor de todo o mundo construíram um inventário de relatos sobre as experiências humanas. Narrativas transmitidas de boca em ouvido, que atravessaram os séculos, sobreviveram a guerras, pestes, invasões e toda sorte de infortúnios, para chegarem até os dias de hoje. Isso se deu por meio de uma tecnologia de transmissão de conhecimento tão complexa quanto delicada, a tradição oral.

O tradicionalista africano Amadou Hampâté Bâ define a tradição oral como uma “herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos.” (BÂ, 2015, p. 155)

Gosto de imaginar que essas histórias tradicionais permaneceram vivas no corpo – memória de tantas pessoas porque guardam ensinamentos fundamentais à existência humana. Saberes universais, que nos auxiliam a caminhar pelos labirintos da vida.

Ao contrário dos dogmas, essas narrativas possuem uma natureza simbólica e metafórica que opera seus ensinamentos de forma única, no encontro com quem as escuta. Elas se dirigem ao nosso inconsciente e estão muito além de uma compreensão racional.

Sobre isso, Daniel Munduruku nos revela que entrar em contato com umas dessas histórias antigas é como estar numa sala de espelhos, em que para

“qualquer lado que você olhe, você se verá. Ora estará de frente, ora de lado; ora verá as costas, ora verá em profundidade. Você está no centro da narrativa o tempo todo. Ela é contada apenas para você e, se der a atenção devida, saberá o que ela estará lhe dizendo.”

(MUNDURUKU, 2019, p. 24)

Chama das Histórias

Em 2019, após o nascimento da minha filha, germinou em mim um desejo instintivo de falar sobre a criação da vida. A experiência de gerar e parir me aproximou dessa centelha divina que vive em nós, o poder da criação.

Em busca de dar vasão à essa necessidade e trazer esse tema para as minhas criações artísticas, descobri as histórias de tradição oral. Pesquisando e estudando, me dei conta de que as mitologias respondiam – de forma simbólica – às minhas perguntas sobre a origem, o mistério e o sentido da vida.

Comecei a contar histórias. A primeira narrativa à qual emprestei minha voz e minhas imagens internas foi “A origem do fumo”, uma história tradicional do povo Terena que conheci no livro “Contos indígenas do Brasil” de Daniel Munduruku. Ao conta-la diante de uma audiência, tive a curiosa sensação de estar revelando algo muito íntimo àqueles que me escutavam.

Compreendi, então, o dom que essas histórias possuem de serem ao mesmo tempo tão distante e tão intrinsecamente ligadas à cada uma de nós. Eu precisava seguir contando histórias e tinha também uma necessidade imensa de ouvir outras narradoras.

Foi assim que, em abril de 2019, logo após essa primeira experiência narrativa, convidei algumas contadoras de histórias para nos reunirmos. Fiz o chamado àquelas que, de alguma forma, na sua maneira de narrar, acessavam em mim esse lugar íntimo, de cumplicidade, mesmo sem nos conhecermos. Até hoje me emociona pensar que o desejo do meu coração reverberou em cada uma delas e todas aceitaram o meu convite.

Os amigos e compadres Daniela Araújo e Claudio Barría abriram os portões do Quintal Pluriverso para nos receber. Tudo foi preparado da maneira mais afetuosa e artesanal que se possa imaginar. Éramos sete narradoras. A fogueira foi acesa. As pessoas vieram nos ouvir.

Naquela noite viajamos juntos por terras onde jamais pisaríamos com nossos próprios pés. Vivenciamos um outro tempo e espaço. Nos encontramos, verdadeiramente. Ali, ao redor do fogo, nascia a Chama das Histórias.

Dessa primeira experiência guardo lembranças mágicas. E também a certeza de que não fazemos nada sozinhas. Ao longo de todo o processo de materialização dessa ideia tive a companhia do meu fiel companheiro de aventuras, Ricardo Gadelha, que até hoje divide comigo a Direção Artística e Realização do projeto.

Minhas comadres, Luiza e Mariah, fizeram caldo e montaram um barzinho para servir os convidados. Meu amigo Greg emprestou as cadeiras de praia e a amiga Dani Ramalho esteiras e almofadas, assim, acomodamos o público. Foram muitos esforços empenhados em tornar um sonho realidade e, quando é assim, não costuma falhar.

Desde essa noite, em abril de 2019, nunca mais deixamos de acender nossa fogueira. Fizemos outros encontros em quintais de amigos e, aos poucos, a Chama das Histórias começou a participar de eventos culturais, feiras literárias e espaços institucionais.

Ao longo dos últimos anos fomos contempladas com alguns editais de fomento à cultura que nos possibilitaram realizar, além de apresentações, Rodas de Contação de Histórias ao redor do fogo em formato audiovisual, seminário, pesquisa e em dezembro de 2022 publicamos nosso primeiro livro.

Hoje, a Chama das Histórias é uma teia de vozes femininas que se debruça sobre o universo das tradições orais. Somos um espaço destinado ao protagonismo feminino e a promover o encontro em torno das oralidades em diferentes formatos.

Sigo gestando e gerindo esse coletivo que nasceu de uma necessidade tão íntima e individual e se fortaleceu no encontro com os desejos e sonhos de outras manas, com quem construo a possibilidade de seguir nessa jornada.

Chama das Histórias – o Brasil contado por mulheres

Em 2022 a Chama das Histórias foi contemplada pelo edital Retomada Cultural RJ 2, da Secretaria de Estado Cultura e Economia Criativa – SECEC RJ. Foram selecionadas propostas culturais relacionadas à celebração do Bicentenário da Independência do Brasil. Foi nesse contexto que publicamos o livro “Chama das Histórias – o Brasil contado por mulheres”.

Capa do livro "A chama das histórias"
foto: Renato Mangolin

O livro foi organizado por mim e reúne 10 histórias de diferentes tradições orais brasileiras na versão de 10 Narradoras – Autoras. A obra é dedicada a memória de Marielle Franco, tem prefácio de Auritha Tabajara e texto de orelha de Tatiana Henrique. Uma criação tecida à muitas mãos femininas, com a intenção de responder às perguntas: Que vozes contam o Brasil? Independência para quem? Feita por quem? Quem são as heroínas e heróis dessa história?

Em busca de possíveis respostas, construímos uma obra literária que ressoa diversidade em histórias de origens indígena, afro-brasileira, cabocla ribeirinha e dos interiores do Brasil. O livro é um pequeno gesto coletivo na tentativa de adiar o fim do mundo (KRENAK, 2019) ao contar mais uma história. Novas – Antigas histórias que possam repovoar o imaginário brasileiro com cores, ritmos, cheiros e sons que nos lembrem de quem nós somos ou podemos ser.

foto: Renato Mangolin

O livro é fruto de um delicado e profundo processo de pesquisa e criação, ao longo do qual nos debruçamos sobre questões que nos eram caras nesse desafio de escrever versões de contos tradicionais. De que maneira poderíamos imprimir nossas individualidades e imagens interiores na escrita, respeitando a estrutura original da narrativa? Como expressar por meio da palavra escrita as nuances e sinestesias da oralidade? De que modo criar um registro escrito que não aprisionasse o leitor nas nossas imagens, ao contrário, o permitisse criar as suas próprias? Como pensar a independência por uma perspectiva originária, popular, afro referenciada? O resultado desse processo é

“um livro-pergunta. Que vozes contam o Brasil? Este é um livro-embate. Numa sociedade em que as narrativas estão em disputa, escolhemos estar nas trincheiras poéticas. Este é um livro-beleza. Ainda que o encontro entre culturas nessas terras seja sangrento e opressor, a força dos universos simbólicos de cada povo que por aqui permaneceu, resiste, existe, se encontra e recria novas – antigas simbologias. Este é um livro-festa. Para nos lembrar que luta e celebração podem caminhar de braços dados. Este é um livro-roda. Construído coletivamente, a muitas mãos, por mulheres artistas da palavra que reuniram aqui seus talentos para imaginar outras realidades possíveis. A sociedade que desejamos é um projeto em construção.” (COSTA, 2022, p. 11)

Além do livro, o projeto também virou uma série de vídeos. A cada episódio, a Chama das Histórias oferece ao público a oportunidade de ouvir vozes femininas diversas compartilhando narrativas da tradição oral de origens e temas variados.


Camila Costa é contadora de histórias, atriz e professora de teatro. Mestranda em Ensino de Artes Cênicas na Unirio com pesquisa em oralidade como prática pedagógica. Criou e coordena a Chama das Histórias, coletivo que reúne uma teia de vozes femininas que se debruça sobre o universo das tradições orais por meio de apresentações, pesquisa, ações formativas e publicação literária. É artista integrante do Teatro Caminho e já atuou como artista – docente em instituições de ensino básico, públicas e privadas, tais como, CAp – UFRJ e Lycée Molière.

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