ISSN 2764-8494

ACESSE

Saúde e bem viver
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Contra a fome, a agroecologia

Por André Antunes

Entre todo o conteúdo divulgado pela mídia ao longo do último ano a respeito da escalada da fome no Brasil em meio à pandemia de Covid-19, sem dúvida uma das imagens mais marcantes foi a da chamada ‘fila dos ossos’, que mostrava dezenas de pessoas passando a noite na fila para conseguir pedaços de ossos com retalhos de carne distribuídos por um açougue em Cuiabá em 2021. Era um prenúncio do cenário de agravamento acelerado da insegurança alimentar no país, que ganhou contornos mais concretos a partir de abril de 2022, quando foram divulgados os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

Segundo o levantamento, 33,1 milhões de brasileiros conviviam cotidianamente com a fome no país, um aumento de mais de 73% em relação aos números do final de 2020, quando o 1º Inquérito produzido pela Rede Penssan durante a pandemia apontou que 19,1 milhões de pessoas não tinham o que comer. No total, o número de pessoas convivendo com algum grau de insegurança alimentar no país saltou de 117 milhões para 125 milhões no período, o equivalente a mais da metade da população brasileira.

Muito já se falou sobre as razões por trás da explosão da fome no Brasil (que inclusive foi tema da matéria de capa da edição de julho e agosto de 2021 da Poli). Mas uma dimensão que tem sido pouco explorada – tanto no debate sobre as causas do problema quanto no de que fazer para enfrentá-lo – é a do papel da agroecologia nesse contexto. Para representantes do movimento agroecológico – que vem fazendo a crítica ao modelo do agronegócio e apresentando alternativas para a produção sustentável de alimentos saudáveis, de forma socialmente referenciada – o momento é estratégico para avançar a pauta agroecológica, retomando e fortalecendo políticas públicas que dialogam com os princípios da agroecologia em suas várias dimensões, e que deram certo no enfrentamento a fome no passado, bem como caminhar na direção de mudanças mais estruturais no atual sistema agroalimentar.

Foto: Raro de Oliveira/ANA

O que o avanço do agronegócio tem a ver com a fome?

Há uma ligação direta com o modelo hegemônico de produção, consumo e distribuição de alimentos, com a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar. É o que diz Walter Belik, professor aposentado do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor da Ong Instituto Fome Zero. “As políticas públicas que estavam funcionando até pouco tempo, que agora sofrem um processo de desmonte, tentam equilibrar o jogo, consertar algumas questões que muitas vezes são estruturais. Se a gente pudesse mexer estruturalmente nesse modelo, nessa forma de produzir do sistema agroalimentar, a gente poderia eliminar alguns aspectos inerentes a esse modelo e que contribuem para o quadro de insegurança alimentar”. Ele dá o exemplo da monocultura, e cita o clássico ‘Geografia da Fome’, de Josué de Castro, publicado há 76 anos. “Ele analisa a Zona da Mata do Nordeste, que na época era uma grande produtora de açúcar para exportação. Ele nota que uma área super fértil, que tem uma renovação hídrica, que tem todas as condições para produzir alimentos, esteja sendo dedicada para produzir cana de açúcar, que é uma planta que exige muito da natureza, que acaba desgastando o solo. Ele aponta que não era por acaso que os índices de desnutrição ali eram mais elevados que os observados no Sertão nordestino”, resgata. 

Para os especialistas ouvidos pela Poli, não se trata de uma coincidência que o agravamento da fome atualmente ocorre em paralelo a uma política de estímulo ao modelo agroexportador pelo Estado. “Os últimos anos foram um período em que se acentuou o apoio a perspectiva de modelo agroexportador, pelas facilitações econômicas de estímulo aos monocultivos combinadas com uma flexibilização perversa da legislação ambiental, uma expansão assustadora da aprovação de agrotóxicos e também do desmatamento”, aponta Maria Emilia Pacheco, integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar. “Em paralelo houve uma desconstrução, um desmantelamento de políticas afirmativas que vinham se construindo. Isso gera fome”, complementa Pacheco. E exemplifica com o programa do governo federal para instalação de cisternas no semiárido nordestino, cujo orçamento, como apontou a reportagem da Poli Nº 78 ‘Tem gente com fome’, caiu de R$ 643 milhões em 2014 para R$ 74,7 milhões em 2020. “Em lugar da indústria da seca nós temos a perspectiva de convivência com o semiárido, baseada no princípio dos estoques, de água, de terra, o estoque de sementes, de alimentos para os animais. É essa visão que organiza uma proposta tão significativa como a convivência com o semiárido, e isso foi interrompido”, lamenta. E complementa: “Por outro lado, o cerco dos grandes projetos, da expansão da soja, do gado, da poluição das águas, vem se fechando. Muitas comunidades à beira de um grande rio que não tem peixe, em razão da desestruturação da paisagem, do desequilíbrio ecológico gravíssimo, com os animais disputando alimento com os humanos porque com a devastação eles chegam perto dos roçados”.

Raro de Oliveira/ANA
Foto: Raro de Oliveira/ANA

Mobilização no contexto de eleições

A superação da fome foi um dos itens da agenda do movimento agroecológico para os próximos quatro anos apresentada na publicação ‘Brasil: do flagelo da fome ao futuro agroecológico’. Lançado em setembro pela ANA, como parte da Campanha ‘Agroecologia nas Eleições’, o documento, que reafirma o papel central da agroecologia no enfrentamento a insegurança alimentar, mescla propostas mais imediatas – como a retomada e ampliação de políticas e programas que já existem – com outras que reivindicam transformações mais estruturais, com medidas que combatam a elevada concentração fundiária do país.
“É importante a gente lembrar que a agricultura familiar é responsável pela maior parte do alimento que a gente consome. O agronegócio produz commodities. Se você não tem políticas para apoiar em um momento de crise como o que estamos vivendo, você coloca em risco a necessidade de cuidar do fortalecimento, da retomada e até da criação de políticas voltadas a apoiar esse setor que produz alimentos para a população brasileira”, afirma Flavia Londres, integrante da secretaria-executiva da ANA. Ela ressalta, no entanto, que agroecologia e agricultura familiar não são sinônimos. “A agricultura familiar não é toda agroecológica, é evidente. Mas é um sistema de produção perfeitamente compatível com a proposta da agroecologia, então, começa por aí”, diz Londres. Nesse sentido, ela vê como essenciais a retomada de políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), pelos quais o governo federal adquire alimentos produzidos por agricultores familiares respectivamente para o abastecimento de programas de assistência social e para a alimentação dos estudantes da educação básica nos estados e municípios. “Eles tiveram uma importância enorme, porque quando você garante a compra da agricultura familiar você consegue apoiar a estruturação da produção numa comunidade. Os agricultores conseguem se planejar, investir na produção”, diz Londres.

Movimentos sustentam: combate à miséria passa pelo resgate de programas de aquisição de alimentos. Aliar ensino, pesquisa e assessoria técnica na área também é fundamental. Mas é preciso ir além: construir alternativas ao nosso perverso modelo agrícola.

Segundo reportagem do portal O Joio e o Trigo, no entanto, o orçamento do PAA teve uma redução de 77,3% entre 2014 e 2019. Segundo a matéria, em 2020 houve um incremento de R$ 500 milhões ao programa por meio da aprovação da Medida Provisória 957, reivindicada pelo movimento agroecológico em meio à pandemia de Covid-19. Só que apenas 43,7% dos recursos disponíveis foram executados pelo Ministério da Cidadania. Já em 2022, o presidente Jair Bolsonaro vetou a emenda parlamentar à Lei de Diretrizes Orçamentárias que previa um reajuste de 34% no PNAE. “Tivemos governos que investiram pesadamente em políticas promovendo o agronegócio. O que teve de dinheiro para crédito, ensino, pesquisa, isenção de impostos, financiamentos, perdões de dívidas, estruturação de mercados, tudo voltado para o agronegócio. Apesar disso a agricultura familiar sobrevive, produzindo até hoje 70% dos alimentos que a gente consome. Imagina como seria se a gente tivesse um conjunto de políticas destinadas para promover esse modelo. Ensino, pesquisa, programas de organização e fortalecimento de mercado. Isso é perfeitamente possível, basta ter vontade política”, cobra Londres.

Ela afirma que a Campanha ‘Agroecologia nas Eleições’ da ANA realizou também um levantamento das políticas públicas de apoio a agroecologia e segurança alimentar nos estados e municípios, e contabilizou mais de 700 dessas políticas nos municípios e mais de 400 nos estados. “São muitos temas: você tem políticas de apoio a mercados, feiras, de regularização fundiária, de reconhecimento de territórios de populações tradicionais, de apoio a juventudes, mulheres, um leque muito grande. Mas é importante observar que em muitos casos identificamos políticas que já são aprovadas, previstas em lei, mas não têm orçamento garantido. Uma boa parcela não está perfeitamente consolidada, tem orçamento, ou sofre descontinuidade. Mas é um referencial bastante importante no sentido de dar exemplos e de inspirações sobre o que pode ser feito em termo de política pública”, diz a integrante da secretaria-executiva da ANA.

Para Maria Emilia Pacheco, a pandemia de Covid-19 evidenciou a importância de se construir uma política de abastecimento alimentar popular. “Tão importante quanto a produção do alimento saudável é a sua distribuição. Nós precisamos de uma distribuição descentralizada, e a ação de solidariedade dos movimentos sociais, das Ongs, das articulações, mostrou que para avançar nessa interação campo-cidade é preciso que haja não só o crescimento de equipamentos públicos de segurança alimentar, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, etc., como também um apoio público a essa rede que tem garantido uma descentralização da distribuição de alimentos”, opina Pacheco.

Articulação de políticas

É num conjunto amplo de políticas articuladas tendo como referencial a agroecologia que o movimento aposta como resposta à fome. Para Flavia Londres, outra frente fundamental é o da assistência técnica e extensão rural. “As comunidades rurais em que produzem alimentos têm direito a uma assistência técnica de qualidade, com enfoque agroecológico, e não uma assistência tradicional, orientada pelo pacote da Revolução Verde. Comprar sementes industrializadas, adubo, agrotóxico, não é um caminho viável para a agricultura familiar”, diz a integrante da secretaria-executiva da ANA.

Maria Emilia Pacheco acredita que esse é um ponto em que ainda se avançou pouco, mesmo nas políticas voltadas especificamente para fomentar a agroecologia, como a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), que completa 10 anos em 2022.   “No movimento agroecológico não falamos em extensão rural, porque para nós é um princípio a troca de saberes. Não temos aquela visão difusionista que está na origem da extensão rural. Há que dialogar sobre saberes, isso está na base da construção também da agroecologia como ciência, um diálogo entre o saber técnico, construído através da história da ciência, mas com esse saber tradicional que tem um sentido fundamental e que se traduz em iniciativas tecnológicas concretas”, aponta a integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, para em seguida exemplificar: “os sistemas agroflorestais que combinam as plantações, tipos de plantas diferentes, de diferentes andares, isso é originalmente uma prática dos povos indígenas. Os saberes desses povos em lidar com os diferentes biomas e ecossistemas é fundamental, o Brasil é muito diverso”.

Nesse sentido, o movimento agroecológico também reivindica medidas para incorporar a agroecologia ao ensino e à pesquisa científica no país. É o que diz Islândia Bezerra, presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), braço acadêmico do movimento. “O Congresso Brasileiro de Alimentação e Nutrição, que é o principal da América Latina, nos debates, nas mesas, painéis, grandes conferências, não teve nada específico da agroecologia para a promoção da saúde na perspectiva do alimento saudável, seguro. A gente precisa politizar ainda mais nas diferentes áreas do conhecimento, não só nas ciências agrárias, da saúde. Precisamos politizar o debate da agroecologia, trazer sua concretude para o nosso dia a dia, para a sala de aula, para a pesquisa, extensão, que é o que o agronegócio faz muito bem”, diz Bezerra.

E completa: “A agroecologia precisa ser política, se não for ela é jardinagem. Porque não é apenas produzir alimentos saudáveis, sem veneno, é algo a mais. É questionar uma estrutura latifundiária, uma cultura escravista, onde temos pessoas trabalhando de sol a sol para ganhar 40 reais de diária, quando não é escravizado nas fazendas. A agroecologia precisa questionar isso. Nesse contexto político ela é fundamental para pautar a transformação das estruturas no nosso país”, defende.

 André Antunes é jornalista da equipe de comunicação da EPSJV /Fundação Oswaldo Cruz.


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