ISSN 2764-8494

ACESSE

Cultura Viva
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Infâncias sonoras

Por Lucilene Silva

A pesquisadora Lucilene Silva, cantora e educadora musical, descobriu que a música que procurava estudar estava muito mais próxima dela do que podia imaginar. Eram canções, ritmos e melodias que fizeram parte de sua infância. Desde então, vem percorrendo o Brasil e o mundo em busca dessas infâncias sonoras. Coordenadora do Centro de Estudos e Irradiação da Cultura Infantil do projeto OCA – Escola Cultural, em Carapicuíba (SP), ela diz que a riqueza da música tradicional da infância não pode ficar de fora do currículo da educação musical no país.

Cada lugar tem uma história, um povo e uma geografia diferente, consequentemente tem manifestações, costumes, músicas e danças também diferentes. A cultura da infância é o espelho dessa diversidade, pois traz como principal tema o cotidiano de cada lugar.

O que acha do currículo de música ser agora obrigatório nas escolas?

Acho de extrema importância o retorno da música à escola, de onde nunca deveria ter sido retirada. Vivemos décadas sem música nas escolas e perdemos muito com isso. Com o retorno, é preciso trazer à tona uma música viva, alegre, que faça dançar, cantar, brincar e aprender com prazer. É preciso que nos juntemos num batalhão para aprendermos e construirmos uma educação musical brasileira, que considere as nossas particularidades, que toque e dance a nossa música, que olhe de verdade para as crianças que se expressam e descobrem o mundo brincando.

E como entra a música tradicional da infância?

Diante da riqueza e da diversidade da música tradicional da infância, é inegável a importância de tê-la como substrato principal na educação musical das crianças brasileiras. Cultivá-la é possibilitar que as crianças aprendam sobre o Brasil e sobre sua diversidade, que conheçam a música brasileira e aprendam a apreciá-la, que preservem essas preciosidades que aos poucos estão se esvaindo.

Qual a importância dos acalantos na primeira infância? E como a música evolui ao lado das crianças?

Conforme diz pesquisadora Lydia Hortélio, a música tradicional da infância é a nossa língua materna musical. O acalanto corresponde ao primeiro contato da criança com a música, que traduz em sua estrutura simples e delicada o que ela precisa nesses primeiros anos de vida. Na medida em que as crianças crescem, esse repertório se amplia, com brincos, histórias, brincadeiras de roda, bola, corda, mão, amarelinhas, cinco pedrinhas, elástico, bola, gude, pipa, pião, pegadores e brinquedos, que seguem os degraus dessa infância num crescente, trazendo novos desafios, desafios esses também encontrados nas brincadeiras com a palavra: parlendas, fórmulas de escolha, adivinhas, trava-línguas e quadrinhas.

O que acha das cantigas de roda que têm suas letras mudadas pelo politicamente correto?

Em nome do politicamente correto, com a desculpa de que as canções brasileiras são de terror ou fomentam a violência, alguns adultos vêm transformando os textos das músicas, de histórias tradicionais da infância e as regras das brincadeiras, sem perguntarem se as crianças, verdadeiras autoras desse repertório, concordam com isso. É importante considerar que a cultura da infância brasileira, não se restringe ao “Atirei o Pau no Gato” e ao “Boi da Cara Preta” e que para a criança há muito mais sentido o brincar com as palavras do que tradução literal das mesmas, o que não é feito por elas. Nas minhas pesquisas tenho encontrado centenas de exemplos que expressam a inteligência e a criatividade das crianças com as palavras, exemplos esses que podem e devem ampliar o repertório das crianças. O número de brincadeiras e canções que remetem ao medo, ao castigo, ao preconceito e a outras fragilidades de gerações do passado e do presente, são em número muito menor do que aquelas que não trazem esses aspectos nos textos.

Pode contar um pouco das semelhanças e diferenças que encontra nas músicas da infância dos países que pesquisou?

A cultura infantil é universal e as brincadeiras trazem os mesmos gestos em todos os lugares do mundo. As minhas pesquisas fora do Brasil me comprovaram que brincamos das mesmas coisas em todos os lugares do mundo, o que difere é língua, a estrutura musical e o cotidiano de cada lugar que aparece nas brincadeiras de forma peculiar. Em todos os lugares por onde passei encontrei acalantos, brincadeiras de roda, corda, mão, amarelinhas, pegadores, jogos etc. com os mesmos gestos. Registrei, por exemplo, “Hopscotch”, amarelinha da Grã Bretanha, que traz as mesmas regras e forma de brincar da “Maê”, amarelinha que registrei na Aldeia de Carapicuíba (SP).

É possível estabelecer relações entre o comportamento das crianças de um lugar e suas brincadeiras? Como essas cantigas se relacionam com a cultura do lugar?

Como exemplo cito as brincadeiras que registrei em Pântano do Sul (SC), lugar que teve uma colonização portuguesa, açoriana e traz impressa na música da infância aspectos dessa cultura. A Bahia, que tem a força e a beleza da cultura negra, tem visivelmente as características dessa música na música da infância. A geografia e o modo de vida de cada lugar também são fatores determinantes nos tipos de brincadeiras: os lugares montanhosos trazem um repertório diferente do de lugares planos; nas regiões cercadas por mares ou rios, as brincadeiras são outras; nas áreas rurais, as brincadeiras também têm diferenças das áreas urbanas.

Quais os temas mais encontrados nas cantigas pesquisadas?

A partir do repertório da minha pesquisa, o tema mais recorrente nas brincadeiras é o cotidiano que fala pessoas, lugares, acontecimentos, animais, plantas, frutas, flores, etc. Naturalmente as crianças que vivem em áreas rurais trazem um cotidiano diferente daquelas que vivem em áreas urbanas. Essas diferenças também aparecem nas brincadeiras.


Luciene Silva é cantora, brincante e pesquisadora da cultura da infância. A presente entrevista foi publicada originalmente no Mapa do Brincar

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