ISSN 2764-8494

ACESSE

Artes
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Psicopatologia e literatura Ep.8: Herzog ou enviando cartas para a consciência.

Por Adriana Costa

Ouça ou leia, ou leia e ouça…

Você já pensou em escrever uma carta para si mesmo, na busca de compreender algo que aconteceu ou simplesmente rememorar? Moses Herzog vive uma crise em sua vida, tudo parece desmoronar e a descoberta da traição de sua mulher, com um amigo lhe deixa em um estado febril. Por ela, Herzog abandonou um bom cargo numa universidade e se mudou para uma casa de campo caindo aos pedaços, nos cafundós da Nova Inglaterra. Lá eles conhecem Valentine Gerbach, que logo se torna o melhor amigo de Moses e depois amante de Madeleine. Herzog estupefato declara :

“Nunca entenderei as mulheres. O que elas querem? 
Comem salada e bebem sangue humano”

Sozinho, em pleno abandono, comendo “pão de forma Silvercup, feijão enlatado e queijo americano”, dormindo num colchão sem lençol coberto por seu casaco e dividindo a casa com ratos ele mesmo faz seu auto- diagnóstico, avaliando este momento decadente:

“Seu quadro clínico era depressivo — não do tipo mais grave; não um maníaco-depressivo. Havia estropiados piores à sua volta. Se você acreditasse, como todo mundo aparentemente acredita hoje em dia, que o homem era o animal doente, então estaria ele espetacularmente doente, excepcionalmente cego, extraordinariamente degradado? Não. Era inteligente? Seu intelecto teria sido mais efetivo se ele tivesse contado com um temperamento paranoico agressivo, ávido pelo poder. Era ciumento, mas não excepcionalmente competitivo, não um verdadeiro paranoico. E o que dizer de sua instrução?  Era obrigado a admitir, agora, que não chegava a ser um professor competente, tampouco.”

Herzog passa a escrever cartas (que nunca chega a enviar) para vivos, mortos, amigos,
 inimigos, conhecidos e ilustres. As cartas são ao mesmo tempo loucura e sanidade, e também discurso tomado como ação, pois escrevê-las é o exercício ao qual Moses se sujeita para superar o sofrimento e se transformar em um novo homem. Ele escreve para a sua mãe :

 “Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar algumas pequenas loucuras dentro de nós”

Esta pequena loucura de escrever cartas, atua como uma cicatrização da ferida,  Herzog compreende no final da crise:

” Fosse o que fosse o que o acometera nos últimos meses, o feitiço parecia estar passando, indo embora de verdade “

E durante este processo das cartas, ele rememora as relações que viveu, pedindo perdão por suas manias, como no caso de Daisy sua primeira esposa, sente remorso pelas dificuldades da relação que ele mesmo confeccionou : 

“Querida Daisy, tenho umas coisas para lhe dizer. 
Por conta das minha inconstância e turbulência de espírito eu fiz vir à tona o que havia de pior em Daisy. Eu fazia com que as costuras de suas meias fossem tão retinhas, e os botões , dispostos tão simetricamente. Eu estava por trás daquelas rígidas cortinas e embaixo dos tapetes arrumadinhos…”

Ou, avaliando o seu amadurecimento em relação à alguns temas discutidos com seu analista :

“Caro Edwig, anotou rapidamente. Você fez valer a pena pelo dinheiro que lhe dei quando explicou que as neuroses podem ser medidas pela incapacidade de tolerar situações ambíguas. 
Acabo de ler um veredicto nos olhos de Madeleine “Para os covardes, a não existência” 

O distúrbio dela é o excesso de limpidez. Deixe-me modestamente argumentar que agora estou muito melhor em relação às ambiguidades. Acho que posso dizer, no entanto, que tenho sido poupado da principal ambiguidade que afeta os intelectuais a saber, que indivíduos civilizados odeiam e se ressentem da civilização que torna possíveis suas vidas.O que eles amam é uma situação humana imaginária, inventada em seus próprios intelectos e que eles acreditam ser a única e autêntica e humana. Que estranho! Mas a parte mais bem tratada, mais favorecida e inteligente de qualquer sociedade é frequentemente a mais ingrata. A ingratidão , no entanto, é sua função social. Quer mais ambiguidade que isso ?

Faz também nas cartas meditações filosóficas, rumina várias leituras 
por vezes, de forma desconexa ,mas sempre retomando às problemáticas da liberdade de escolha:

“A velha máxima de Pascal ( 1623-62) é de que o homem é um caniço, mas um caniço pensante, poderia ser tomado com uma ênfase diferente pelo cidadão moderno de uma democracia.
Ele pensa, mas se sente como um caniço se curvando aos ventos gerados centralmente….
Tolstói (1828-1910) disse. “Os reis são escravos da história”. 
Quanto mais alto uma pessoa está na escala do poder, mais suas ações são determinadas.
 Para Tolstói, a liberdade é inteiramente pessoal.
 É livre o homem cuja condição é simples, autêntica – real. Ser livre é estar liberado das limitações históricas”

“A premissa necessária é a de que um homem é de algum modo mais do que suas “características”, todas as emoções, batalhas, gostos e construções que ele gosta de chamar de “Minha Vida”. 
Temos fundamento para esperar que uma vida seja algo mais do que uma tal nuvem de partículas, mera facticidade. Esmiúce tudo o que é compreensível e concluirá que só o incompreensível pode proporcionar alguma luz.”

O incompreeensível pode proporcionar alguma luz, no meio de toda confusão espiritual Herzog sorri a cada lembrança que tem dos seus filhos. A vida segue , ele pensa em como as crianças compreendem bem o que é o amor! Encantado canta a canção favorita de sua pequena filha Junie:

“Três cigarras saíram cantando
Hei-ho nunca ficavam quietas
Estavam com o aluguel atrasado
Mas o dia todo, de peito aberto
Cantavam uma canção chamada Rillabyrillabay
Cantavam uma canção chamada Rillabyrill”

Como disse Sócrates :

“A vida não examinada não vale a pena ser vivida pelo homem

 Por mais difícil que seja a crise que você esteja enfrentando, Herzog ensina : mantenha o peito aberto, e reveja seu percurso. Entendi com o filósofo Louis Lavelle que a escrita sempre pressupõe uma longa conversa consigo mesmo, que aspira a se tornar uma longa conversa com todos os homens. Sua função não é de “eternizar o que passa mas de extrair daquilo que passa o que é eterno, o que não passa” compreendendo a escrita como um exercício interior permanente, podemos encontrar uma forma de lidar  com as contradições e meditar sobre o nosso comportamento. Abrir a alma sem fechar os outros em esquemas mentais, enriquecer o seu imaginário e escutar as particularidades de cada um.   

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