ISSN 2764-8494

ACESSE

Cultura Viva
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Entrevista com Gandhy Piorski

Nessa entrevista, Gandhy Piorski fala sobre suas inspirações e caminhos que os levaram a pesquisar a relação do brincar com a natureza.

Por A brinquedoteca

Como foi a sua entrada no mundo dos brinquedos?

Gandhy Piorski: Entrei neste mundo quando conheci um artista chamado Dim há uns quinze anos atrás. Aprendi a fazer alguns poucos brinquedos com ele. Pouco depois conheci Mestre Zezito, um cearense nascido em Juazeiro que muitos anos viveu no planalto central. Este, um dia, abriu sua mala de
bonequeiro cheia de brinquedos, colocou um ventríloquo desbocado no colo e começou a apresentar seus brinquedos articulando o boneco preto de voz rasgada, o ventríloquo sem papas na língua. Zezito foi quem primeiro me mostrou a alma do brincar, do artista construtor de engenhos lúdicos, do poeta
investigador da alma das crianças. Daí andei por caminhos próprios, até que ganhei uma bolsa do MINC
em 2003 (Bolsa Virtuose) para estudar um ano no Museu do Brinquedo de Sintra, Portugal. Este estudo teve um caráter estético; fui em busca do estudo de materiais e mecanismos utilizados nos brinquedos ao
longo do tempo nas culturas; quis conhecer um dos lados do brinquedo brasileiro, o lado ibérico. Visitei outros museus e pesquisadores do brincar na Ibéria e me deparei com um pesquisador que me despertou para o brinquedo feito pela criança. João Amado, professor da Universidade de Coimbra, convidou-me para uma aula inesquecível. Fomos às ruínas romanas de Conímbriga (Portugal) e visitamos mosaicos do primeiro século da era cristã. O professor João apresentou-me a produção infantil naqueles mosaicos. Não pude deixar de entrar por um fio imaginário que aquele apaixonado por brinquedos abriu naquela tarde de primavera com suas descrições minuciosas dos brinquedos romanos. Saí de lá intimado por ele para pesquisar os brinquedos do sertão, os brinquedos construídos pela criança.

Quais as percepções ou encantos se revelaram a você uma vez dentro deste mundo?

GP: Os encantos são tantos, na mesma proporção de ser criança e ter acesa a capacidade do admirar-se com o mundo. Mas destas percepções a mais significativa é de como o brinquedo nas comunidades do interior do Brasil ainda é feito e refeito com tanto vigor. Como a natureza se mantém matéria essencial
da brincadeira. E, principalmente, de como este diálogo com o mundo natural é bem construído, ou continuamente re-elaborado sobre um terreno já brincado e reconhecido por gerações anteriores. Terreno este que é patrimônio comunitário e se faz em linguagens: do corpo, da expressão dita, falada, do uso e construção dos artefatos, da observação e diálogo com outra e profunda linguagem que advém da natureza. Toda esta sincrônica construção do brincar tem sua regência no longínquo fio do imaginar. Penso, num pensar mais poético do que de pretensões teóricas, que quem brinca na realidade é a imaginação. A criança é o brinquedo, e se descobre brincada pelo imaginar. Coisa esta, esteimaginar, que vem de longe e brota nos homens, ainda crianças, com tanto vigor que faz do mundo, uma verdadeira
“oficina de desmanchar a natureza” (como diria Manoel de Barros). Brinquedo tradicional é para mim “oficina de desmanchar a natureza”. Bachelard diz do imaginar como uma decomposição das imagens do mundo. Brincar traduz este percurso, construir brinquedos é desmanchar as formas do mundo, e depois deixá-las se decompor para, um dia, noutra hora, compô-las novamente. Renata Meirelles narra bem isto quando de suas pesquisas pela Amazônia. Procurou nas casas dos meninos onde é que eles guardavam seus brinquedos tão bem construídos das madeiras, frutos e cascas da floresta. Nunca achou um brinquedinho sequer guardado. Eram construídos do desmanche do mundo e devolvidos para ele quando passava o tempo daquele brincar. Vem do mundo e é devolvido para ele, pois é certo que renascerá. De onde vem esta certeza? Do habitat “imaginal” que conhece com perfeição suas
infinitas possibilidades de criar.

O que o levou a pesquisar os brinquedos e brincadeiras do Lageado?


GP
: O Lajeado é apenas uma das 25 localidades que conheci no Ceará. Este trabalho nasceu de um
prêmio que ganhei da Secretaria de Cultura do Ceará, e transformou-se depois de dois anos de pesquisa num projeto de exposição do Centro Dragão do Mar de Cultura. O Lajeado é uma comunidade serrana que um dia foi floresta. Escolhi esta como alguns outros lugares apenas por manter algum isolamento dos centros urbanos. Mas aí me deparei com um tesouro de brinquedos e brincadeiras. As crianças do Lagedo foram meus principais ‘consultores’ nesta pesquisa.

O que as crianças do Lageado expressam de especial nas suas brincadeiras e brinquedos? Ou se preferir, o que os brinquedos e brincadeiras das crianças do Lageado expressam de especial?

GP: As crianças do Lagedo ainda vivem uma vida bastante integrada com sua comunidade e participam ativamente da vida comunitária. Participam do trabalho dos pais, auxiliam nas colheitas do milho da fava e da cana, alimentam os animais para o trabalho na lavoura e no transporte da água, auxiliam nas tarefas domésticas, estudam e brincam, brincam e brincam. Trabalham sim. Mas não é o tal trabalho infantil; é a forma de serem educados dentro dos costumes familiares, forma de apreensão de valores, referencial de conduta ética e construção social. Esta comunidade mantém, ou luta para manter, sua resistência no núcleo de uma vida comunitária ativa. Não entra na onda do “criança não trabalha” e deixa seus filhos à deriva de costumes massificados e de uma educação formal cronicamente carente dos nutrientes do ser. Acredita que participar das tarefas domésticas e auxiliar os pais em períodos de colheita é fundamental na sua educação, na união da família, na transmissão dos costumes. Talvez, por isso, tenha encontrado tanta infância neste lugar.

Talvez por este convívio de maior participação na vida comunitária, possivelmente por uma integração maior das crianças com sua geografia humana e territorial, provavelmente daí ecoem reminiscências de infância dos pais, avós, irmãos mais velhos e amigos com maior nitidez e brilho. Ecos estes que soam e nutrem perfeitamente a constante refazenda dos brinquedos e brincadeiras. Não há nada de muito especial, o que há é espaço para ser criança, e quando este espaço é alimentado pelos mais velhos, quando este estado de espírito é reconhecido e autenticado pela memória dos pais, aí a expressão das crianças chove, molha a terra e rega os dias. Quando criança pode ser mais criança, quando o dia pode ser de brincar, a profusão de nascimentos imaginários é proporcional à quantidade daquilo que foi emprenhado no ser de cada menino. Parir imaginação é dos estados mais gratificantes para alma ainda tão recordada de útero, de maternidade.

Você apresenta as brincadeiras e seus brinquedos em quatro grandes grupos Terra, Água, Fogo e Ar. O que o levou a isto?

GP: Nestes meninos de mar e rios, de serras e floresta, de secas e sol vêem se ainda gestos arraigados do manejo com a natureza. De um Brasil de pequenas comunidades poderíamos criar metáforas de manguezal, onde fervilha vida, e nascem pro mar tantos pequenos germens de brasilidade que pensam alguns terem desaparecido no assoreamento do tempo. Meninos que ainda conhecem as marés, as seivas, os passarinhos, os hábitos dos bichos. Crianças que ainda tem em sua fonte de experiência imaginativa a natureza, que fazem seu brinquedo com quase nada. Quase nada aos olhos de quem pouco discerne as propriedades da madeira de uma Timbaúba e o cheiro úmido do cedro verde. Mas pra quem brinca com estas coisas, cada coisa é teia de conhecimento valioso pra melhor brincar. Nem todos, nestas comunidades, brincam com o mundo natural tendo níveis mais profundos de apropriação do mesmo. Mas tem aqueles meninos, o melhores da espécie criança, os mais ávidos de imaginação, os que querem sondar a vida por dentro e inspiram os demais, os que não resistem em ver o que mora dentro de um sapo. São eles os verdadeiros mestres do brincar e por consequência ou coincidência (que não existe), quase sempre, são os piores alunos na escola. Escola sempre estéril de inspiração.

Mas estes meninos, mestres da brincadeira, é que me fizeram um dia ver numa roda de fogueira que brinca-se com o fogo de um jeito, com a água de outro, com o ar e a terra de outro ainda. Mas digo isto como desculpa apenas para justificar um método de pesquisa e experimentação estética, se é que isto é
método. Pois daí nasceu uma exposição sobre brinquedos do sertão e uma forma de “classificar” o acervo coletado. Mas longe de mim, eu querer classificar o que é brinquedo das crianças, pois um pacto tenho com esta anima erê : de seu largo rio só quero o navegar, mergulhar, contemplar e agradecer.

Assim desenhei:

Da terra nasce uma imaginação dos estados geográficos, como diria Bachelard, uma imaginação telúrica. As crianças buscam no brincar um primeiro diálogo com o mundo social, com a comunidade com seus hábitos. O imaginar aqui, nos brinquedos da terra, cria um universo de brincadeiras que dialoga com a
casa, com a família, com o trabalho dos pais. A imaginação desperta nas crianças o anseio de intimar-se com o mundo social. Surgem as imagens do aconchego nas brincadeiras de casinhas, os pequeninos
espaços, a miniatura, o escondido, o escurinho, as redinhas para acalantar o sono de bebês (bonecas de sabugo de milho, de pano, de pedra, dos ossos). Mas esta busca de intimidade é uma construção de individualidade, pois é da natureza da terra produzir corpos, seres únicos ocupando espaços únicos. A intimidade almejada se projeta para a descoberta do íntimo da natureza, das coisas todas, do que tem dentro dos corpos dos bichos (fazendinhas de ossos, bolas de papo do peru, de bexigas de carneiro),
das plantas, dos brinquedos que precisam ser quebrados e desmontados. Tal estado imaginal, inspira no brincar, um entranhar-se no mundo para ser um, mais um ocupando seu único lugar no espaço. Lições de enraizamento nascem dos brinquedos da terra.

Do fogo, a imaginação denota novas impressões do mundo. O estudo da luz e da sombra, as brincadeiras de medo e assombração, as histórias fantásticas de espíritos e almas penadas. Câmara Cascudo diz que o brinquedo africano restou nas histórias e musicalidade da infância. Muitas destas histórias são das impressões do fogo, pois, nutrem um universo espectral da infância, como a história da escravinha queimada que rondava as casas grandes. O fogo é do empirismo, da transmutação e queima dos materiais. Mas é principalmente um psiquismo de transgressão no brincar, “o roubo do fogo”, o brincar escondido, o medo de se queimar, o fascínio de desobedecer e realizar peripécias luminescentes, incríveis. Sombras na vela, estalos de pólvoras, lanternas de lamparina para andar no escuro, para iluminar o soturno, o escondido, o encoberto, os tabus. As lições do fogo são as lições de Prometeu
e o preço do conhecimento.

A água nutre um imaginar fluídico, causa uma impressão corpórea direta e mais profundamente sentida do que nos demais elementos. A imaginação dos brinquedos da água desperta para o equilíbrio e a entrega. Simétricos são os barquinhos de crianças ainda pequenas que moram na beira do mar. Para que
assim sejam, a natureza deve ser examinada com maior discernimento de materiais e texturas.

As madeiras devem ser mais bem escolhidas, os cortes devem ter linearidade e sentido orgânico. “Rabiscas” são barquinhos feitos com uma única palha de coqueiro, aparentam o primeiro traço
das antigas naus egípcias por seu longilíneo desenho e sóbrio equilíbrio. As brincadeiras de deslizar,
escorregar, tomar banho de chuva correndo atrás de barquinhos de papel, todas elas são estados de uma
imaginação que pede imersão, mergulho. Um brincar “pele a pele” com a natureza deste elemento, com as impressões de interioridade. A água é um espelho de nossa interioridade, que o diga Narciso.

Nos brinquedos do ar encontramos menos de diálogo ou transgressão. Encontramos aqui uma imaginação contemplativa, das asas, das penas, dos vôos, dos longos silêncios no manuseio da pipa. Empinar pipa é um diálogo sensorial com as alturas, com a visão amplificada, com as cores e intensidades
da luz. O mundo é alargado redimensionado pelo deslocamento dos saltos, dos vôos dos aviões de papel, das flechas e zarabatanas de Taboca. A perna de pau decola o olhar, quer romper a visão gravitacional para uma imaginação sideral, quer ensaiar altura, pede asas. Sonhar voando, só nos dias mais calmos quando nos é dado repouso e contemplação.

Os brinquedos do ar sublimam a gravidade dos costumes, ditames, padrões e molduras sociais. Brincar com o ar é de uma linguagem extensiva, liberta. Quem pulou de uma cachoeira sabe que a extensão do
grito faz um rastro no ar: lá vou eeeeeeeuuuuuuuuuuuuuuuuu! Brinquedos do ar pedem respiração profunda ou pausada. Mirar um alvo com a baladeira (estilingue) faz inspirar e suspender o expirar. A imaginação doa ar na brincadeira ensina a fala harmônica, ensina a liberdade do falar.

Esse texto foi também publicado na Brinquedoteca, um espaço da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos – ABRINQ.


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