ISSN 2764-8494

ACESSE

Solstício de verão
Seu tempo de leitura: 7 minutos

O clima de mudança nos impossíveis possíveis

por Marcele Oliveira

Eu — mulher, preta, periférica — vejo diariamente muitas de mim serem privadas de sonhar; eu —jovem, estudante, comunicadora, pesquisadora — contrario estatísticas e traço novas narrativas. Insisto em pensar no futuro. O sonho e o futuro, a meu ver, andam juntos e somente juntos podem construir um horizonte possível. Mas esse horizonte, que é democrático, empático, diverso, coletivo e digno para todo mundo é tido como impossível por conta da constante guerra que vivemos. E entre tantas batalhas vigentes, tenho me aprofundado no entrelaçamento de sonho, futuro e crise climática. 

A ciência alerta, desde a metade do século passado, que mudanças significativas no clima vão resultar em consequências catastróficas a curto, médio e longo prazo. Assim: tudo junto. Mudanças climáticas são as alterações na composição da atmosfera causadas pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa oriundos da queima de combustíveis fósseis, que é a base e o sustento das atividades produtivas relacionadas ao nosso modo de vida moderno e, ironicamente, nada sustentável. 

O último relatório, divulgado em fevereiro, pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), destaca a urgência de ações concretas em relação aos efeitos das mudanças climáticas no planeta. De forma objetiva, precisamos globalmente alcançar a neutralidade de carbono até 2050 e acelerar alternativas para não superaquecer a Terra. Agora, pergunto: quem são os principais responsáveis pelas decisões centrais dentro desta temática? É claro que não somos eu e você. São as grandes economias, majoritariamente capitaneadas por quem sempre explorou tudo e todos ao seu redor, que geram 80% das emissões globais de gases de efeito estufa e não sofrem as consequências diretas dos desastres causados por essa irresponsabilidade. Injusto, não é? 

O cenário vem se agravando e vai balançar a 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27), que será realizada em novembro deste ano no Egito. Cientistas apontam que o cenário de emergência já está ocasionando uma alta de eventos extremos, ou seja, temos mais tragédias climáticas acontecendo em todos os lugares e poucas ações efetivas de como lidar com elas, tornando-as cada vez mais graves.

Redução de emissões, mitigação e financiamento para adaptação com foco nos países em desenvolvimento e comunidades nas situações de maior vulnerabilidade são pautas que grandes agentes do clima, ONU e empresas estão, tardia e lentamente eu diria, considerando em suas agendas. Mas, novamente, são as grandes potências que verdadeiramente possuem recursos para se adaptar e reconstruir infraestruturas atingidas. E qual o nível de comprometimento delas com a pauta, entendendo que estamos falando diretamente sobre direitos básicos, como acesso a água potável e produção de alimentos para gente preta, pobre e residente de centralidades do sul global, com origens latinas, diaspóricas e ameríndias?

A real é que essas mudanças já são sentidas de forma bem agressiva em todas as partes do mundo, e aqui, no Rio de Janeiro, temos exemplos concretos de como o racismo ambiental se apresenta e nos priva de algo que é nosso direito: o convívio com um espaço urbano arborizado, saudável e preservado. Em Realengo, onde cresci e me construí, o Movimento Parque de Realengo 100% Verde luta há décadas pela implementação de um Parque Urbano-Ecológico em um terreno ocioso, onde funcionava uma antiga Fábrica de Cartuchos. Mesmo assim, a mobilização popular não impede a Fundação Habitacional do Exército (FHE), junto à Associação de Poupança e Empréstimo (POUPEX), de anunciar apartamentos de 66 m² a 76 m², com 2 a 3 quartos e 1 vaga de garagem no “poético” Residencial Realengo Verde, com conclusão de obras prevista para 2026. 

Já o Parque, sonho antigo, não tem previsão pública e, de acordo com a Fundação Parques e Jardins, segue em licitação aprovada para um projeto de implementação em somente 50% do terreno. É mole? Mesmo com os dados referentes às recorrentes enchentes na região, à precariedade dos serviços de saneamento prestados e ao aumento generalizado do calor, o interesse político e da especulação militar imobiliária está se sobrepondo não somente ao interesse dos moradores, mas também às reais necessidades de um território que clama por socorro. E o desmatamento daquele quadrado ao longo dos anos só nos assusta.

Esses ataques simbólicos e concretos se arrastam por toda Zona Oeste. Em Inhoaíba, o Fórum Socioambiental do Rio de Janeiro chama atenção para a criação de um Parque Urbano com estranhos interesses nada coletivos envolvidos. Em Bangu, diversas iniciativas se reúnem para pautar a urgência da criação de um centro de memória e cultura denominado Casa do Silveirinha, a ser localizado no terreno do antigo casarão onde viveu um importante diretor da antiga Fábrica de Tecidos, sendo assim mais um terreno verde ocioso visado pela lógica do capital, tal qual Realengo. Em Sepetiba, comunidades ribeirinhas e de pescadores tentam interromper a construção de termelétricas na baía, conscientes de que nem o Rio, nem o Brasil ganham com a construção de mais matrizes de energia à base de combustíveis fósseis. São lutas óbvias, mas, para o sistema que ama passar o trator na Zona Oeste, é mais fácil descredibilizar e ignorar as reivindicações dos moradores em prol da “melhoria e da urbanização”. E aí que está: melhoria para quem?

No Complexo da Maré, o data_labe, laboratório de geração cidadã de dados, aponta que as fontes dos órgãos oficiais da Prefeitura estão equivocadas em diversas afirmações sobre questões relacionadas ao serviço de saneamento básico dentro das dezessete favelas. Em Queimados, o Núcleo Ambiental em Defesa da Baixada afirma que não temos mais condições de perder casas e pessoas para enchentes por problemas que poderiam ser resolvidos com a revitalização e arborização de encostas. No Jacarezinho, chora-se mais uma chacina e discute-se o direito, já que não à vida, ao menos à memória e à dignidade. Em Japeri e Itaboraí, discute-se a precariedade do serviço de transporte público. Na Vila Kennedy, a importância do investimento em educação. Em Petrópolis, 230 vidas foram interrompidas e, a qualquer momento, podem ser mais, já que a urgência de um planejamento urbano real e inclusivo ainda não está solucionada. 

Com tudo isso, de onde tiramos forças para a resiliência climática, nome teórico para a vontade efervescente de mudar aquilo que aí está? Fato é que enfrentar o racismo ambiental é questão de saúde pública e precisa ser entendido como pauta central para a construção de uma sociedade mais igualitária. Chega de desastres naturais que de natural nada têm: esgoto a céu aberto, rios envenenados, poluição do ar, desmatamento desenfreado, tratores em áreas de preservação, mineração ilegal em terras indígenas, emissão de combustíveis fósseis ignorando fontes renováveis… Tudo isso é projeto. Projeto de perpetuação da tragédia – tragédia esta que atinge sempre as mesmas pessoas. E essas pessoas estão aí, dando a letra de que tipo de mudança querem para suas cidades, basta ouvir.

Não existe justiça sem equidade. Precisamos enfrentar as desigualdades, e isso só é possível conhecendo, de forma íntima e assustadora, que Brasil é este e a partir de quais ordens ele se ordena. A quem interessa a falta do Censo, a falta dos dados, a falta de interesse na preservação ambiental, a construção desenfreada e irregular de prédios concretos cinzas e o aumento do poder paralelo? 

Justiça Socioambiental, Justiça Climática, enfrentamento ao Racismo Ambiental. O que tudo isso pode significar quando 33,1 milhões de pessoas estão passando fome?

Bem, eu conceituo junto à equipe da Agenda Realengo 2030, inspirada no que trabalha a Agenda Rio da Casa Fluminense, que Justiça Climática é a luta por um futuro possível, é a luta pelos nossos sonhos. Justiça Socioambiental, eu ouso dizer, é a luta por cidades onde a gente possa viver. Repito: viver e não sobreviver ou só dormir, como propõe a lógica das cidades-dormitório. A gente precisa de cidades para pessoas e pensadas por pessoas, não pelo comércio ou pela especulação imobiliária. Justiça Socioambiental é a implementação de cidades que as pessoas possam usufruir. E, para chegar a estas cidades, temos que tratar educação ambiental como uma premissa essencial, um passo número um. 

Em uma sociedade desigual, as mudanças climáticas são potencializadoras dessas desigualdades, e seus impactos configuram mais um vetor de morte e dor para quem lida com a violência de formas diversas cotidianamente. É guerra, lembra? Falar sobre emergências climáticas é falar sobre a população pobre, preta e periférica, povos originários, mulheres, crianças, juventudes, ancestrais e comunidades LGBTQIAP+. 

O Racismo Ambiental, que é uma forma de expressar como a injustiça e a desigualdade afetam principalmente os grupos acima citados, tornou-se uma adequação indispensável dentro do debate da crise climática. Não dá para falar de mudança se não falarmos do combate ao racismo e da proteção dos sonhos que são, sim, superpossíveis. Sonhar tem que ser possível! E eu, junto a diversos e diversas apoiadores e integrantes da Agenda Realengo 2030, que realizou recentemente um Curso de Políticas Públicas na Ocupação Parquinho Verde, venho pensando no meio ambiente como uma centralidade, para Realengo e para a Zona Oeste. Uma centralidade que não normaliza absurdos sistemáticos contra o nosso território. 

Existe o nosso lado e existe o lado deles. E o lado deles é o lado que interrompe Doms, Brunos, Marielles e muitos outros nomes não nomeados que sonharam impossíveis possíveis porém impossibilitados pelo sistema capitalista e pelo projeto político de genocídio daqueles que organizam suas revoltas. 

O clima agora é de mudança para possibilitar um futuro possível e sonhador, que seja preto, verde e periférico. Inventivo, público, coletivo e tecnológico. Eu não vou vender o meu futuro. E eu não vou parar de pedir por justiça. Sim, porque sou teimosa, mas também porque sou sonhadora. É no meu sonho de cidade que mora a fagulha de esperança que me mantém viva e que não se destrói tão facilmente diante da tristeza e da raiva com o descaso ambiental. É o sonho que dita o caminho! O sonho que mostra as possibilidades daquilo que nos fazem acreditar impossível. Sonhos são a nossa riqueza. São o nosso lampejo do futuro. Portanto, digo repito e grito para todo mundo ouvir: sonhos são inegociáveis. Acredite!

Essa matéria foi publicada originalmente em Amarello

Marcele Oliveira nasceu na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Comunicadora, produtora e ativista climática. Graduanda em Produção Cultural pela UFF – Niterói, mestre de cerimônias do Circo Voador e mobilizadora popular no Movimento Parque de Realengo Verde, pesquisando Justiça Climática e Racismo Ambiental.


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