ISSN 2764-8494

ACESSE

Diálogos Transversais
Seu tempo de leitura: 5 minutos

Por um feminismo de amasamiento

Skia Nevermore

Interseccionalidade entre o pensamento de Lélia Gonzalez e Gloria Anzaldúa

Na obra intitulada “Borderlands/La Frontera: The New Mestiza”, no capítulo “La conciencia de la mestiza/rumo a uma nova consciência”, a teórica cultural Gloria Anzaldúa apresenta seu conceito de consciência mestiça, trazendo em seu texto as problemáticas envolvendo questões históricas, culturais e políticas de sua vivência enquanto um corpo queer feminino, mestiço e chicano. Neste texto vamos apresentar o conceito de feminismo de amasamiento.

A autora apresenta suas considerações através de seus subtítulos, construindo uma narrativa através da estrutura de seu texto que, ora se inicia com poesias de sua própria autoria, ora com citações de suas referências bibliográficas, de forma um tanto quanto inédita para um texto acadêmico.

Gloria nos traz a visão do lugar do mestiço, trazendo analogias em relação a sua subjetividade enquanto mulher de origem mexicana e lésbica. Esses lugares pelos quais a autora perpassa são base para recurso argumentativo e ilustrativo de um não, e ao mesmo tempo, todos os lugares. Dessa forma, a autora faz com que o leitor reflita sobre todos os corpos que podem assumir esse local de mestiçagem, principalmente, mulheres latinoamericanas.

“Como mestiza, eu não tenho país, minha terra natal me despejou; no entanto, todos os países são meus porque eu sou a irmã ou a amante em potencial de todas as mulheres. (Como uma lésbica não tenho raça, meu próprio povo me rejeita; mas sou de todas as raças porque a queer em mim existe em todas as raças.) Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio as crenças culturais/religiosas coletivas de origem masculina dos indo-hispânicos e anglos; entretanto, tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados.”

ANZALDÚA

O resgate histórico da autora é preciso e detalhado, trazendo registros da dominação colonial e cristã para com os chicanos e a América latina em geral. Apontando as raízes do machismo e homofobia através dos mesmos, Gloria faz um levantamento , através de uma reflexão sobre o padrão de masculinidade tóxica antiga e atual. Também nos apresenta reflexões sobre conceitos e figuras epistêmicas negligenciadas e demonizadas pelos brancos/cristãos cotidianamente e academicamente: a Encruzilhada e Exu, pincelando, dessa forma, a cultura Yorubá, a diáspora africana, os pretos e mestiços que são tocados por essa linguagem e representação.

É importante destacar também a importância da terra – direito negado a muitos latino americanos, desde os genocídios de vários povos indígenas pelo continente à diáspora africana, até os dias de hoje – em “La conciencia de la mestiza/rumo a uma nova consciência”. Através de suas memórias, ela articula com as demandas já narradas anteriormente, apresentando agora em uma visão territorial, a terra enquanto espaço físico, de onde se tira o alimento e a terra enquanto espaço político, de apagamento e de neocolônia.

Desse modo, polida, porém cativa, faz um apelo enquanto lança críticas e convida aos brancos para que reconheçam o seu local na luta pelos direitos, um local de assistência, sem protagonismo. Assim como convida a todos mestiços que reconheçam os locais e situações onde não possuem passabilidade para ocupar enquanto representação, de forma doce, original e única.

Por um feminismo afro-latino-americano

No capítulo, “Por um feminismo afro-latino-americano”, da obra com mesmo título, a filósofa Lélia Gonzalez expõe, por meio de vastos campos de referências nesse ensaio, a repressão sofrida por mulheres amefricanas e latinas.

Lélia inicia a discussão contextualizando o motivo pelo qual escreve esse ensaio, que se trata de uma reflexão sobre a extinção da escravidão no Brasil, país onde o reflexo da escravidão e do racismo ainda oprimem e descriminam mulheres pretas. Como feminista, a autora discorre sobre o preconceito que os corpos femininos pretos, indígenas e mestiços sofrem cotidianamente, levantando questões de classe, gênero e raça.

“Falar de opressão à mulher latino-americana é falar de uma generalidade que esconde, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito alto por não serem brancas.”

GONZALEZ

O argumento que será trabalhado por Lélia é a hierarquização de raças, tidas pela cor da pele, no Brasil, assim como em toda a América latina. Assim, ela irá se reivindicar, primeiramente, enquanto antirracista, focando nas demandas do movimento negro, já que o Brasil é um país majoritariamente preto e o corpo proletariado, feminino.

Antes de finalizar o texto, Lélia levanta a demanda tida como “padrão” na América latina – a objetificação das mulheres pretas, das mulheres amefricanas – refletindo sobre a exploração econômico-racial-sexual que muitas mulheres não brancas da América latina sofrem.

“Denunciando sua situação de discriminadas entre os discriminados, elas afirmam: ‘Fomos moldadas como uma imagem perfeita em tudo o que se refere a atividades domésticas, artísticas e servis; fomos consideradas ‘especialistas em sexo’. É dessa maneira que foi se alimentando o preconceito de que a mulher negra apenas atende a essas necessidades’. Vale ressaltar que os doze anos que separam os dois documentos não significam nada comparados aos quase cinco séculos de exploração que ambos denunciam. Além disso, observa-se que a situação das amefricanas em dois países é praticamente a mesma sob todos os pontos de vista. Um ditado “popular” brasileiro resume essa situação, afirmando: ‘Branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar’. Atribuir às mulheres amefricanas (pardas e mulatas) tais papéis é abolir sua humanidade, e seus corpos são vistos como corpos animalizados: de certa forma, são os “burros de carga” do sexo (dos quais as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, verifica-se como a superexploração socioeconômica se alia à super exploração sexual das mulheres amefricanas.”

GONZALEZ

Dessa forma, o capítulo traz, dentro da coletânea de ensaios que a obra apresenta, uma justificava e um resumo bem detalhado, que define bem a obra, assim como os motivos que a fazem ser uma das principais referências em estudos de raça e feminismo dentro e fora do Brasil.

O feminismo de amasamiento na América Latina

Diante da compreensão das obras, cabe aqui fazer algumas considerações. Gloria e Lélia trazem em seus escritos as demandas do feminismo branco para as demais mulheres, sobretudo, as latino americanas, através de uma mesma perspectiva, a mestiçagem.

É interessante observar os paralelos que podem ser levantados com a leitura desses textos: México-Brasil, América Latina- América do Norte, Europa, Ásia, África…E, assim, refletir sobre as diferentes repressões que uma mulher pode sofrer, de acordo com sua subjetividade, de acordo com sua cor, com seu corpo, sua sexualidade, sua identidade de gênero, etc.

Tendo essa perspectiva em mente, penso que o movimento feminista atual do Brasil e da América latina deveria caminhar rumo a la consciencia mestiza, ou melhor, buscar um feminismo de amasamiento, no qual todas e todes – incluo aqui mulheres cis, trans e corpos não bináries, demanda queer que é inviabilizada por muitos nas produções acadêmicas – possam se juntar e se unir para dar novos significados aos espaços de mulher e feminilidade na sociedade patriarcal, racista, machista, capitalista, cristã, cisnormativa transfóbica. Sem mais segmentações e atritos. Somente com uma consciência mestiça, um feminismo afro-latino-americano… Somente com um feminismo de amasamiento.


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Skia Nevermore é estudante de Licenciatura em Filosofia pela UFF e Jovem Comunicadore pela BemTv. Professore em formação, amante da arte.

Imagem de capa, colagem por Claudio Barría com fotografias de divulgação, tapeçaria de Genaro de Carvalho e iconografia da cultura Maya disponíveis na web.

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