ISSN 2764-8494

ACESSE

Saúde e bem viver
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Precisamos falar sobre Cannabis

Autismo, câncer, epilepsia, Parkinson, os efeitos descritos nas bulas dos principais remédios para essas doenças incluem uma extensa lista de contraindicações. E se existisse uma substância natural, de uso milenar, capaz de auxiliar nesses problemas de saúde, sem tantos efeitos colaterais, proporcionando uma melhora significativa na qualidade de vida de diversos pacientes?

A discussão em torno do uso medicinal da cannabis tem despertando interesse tanto na comunidade médica quanto na sociedade em geral. A possibilidade de utilizar compostos da planta, como o canabidiol (CBD), para tratar uma variedade de condições de saúde tem suscitado debates sobre a necessidade de uma política mais inclusiva e regulamentada no país.

Embora tenhamos avançado nas discussões e nas autorizações de uso, O Brasil ainda progride timidamente na direção da regulamentação da cannabis para fins medicinais. De acordo com Steve Rolls, um dos autores do guia sobre regulação da cannabis “Como regular a Cannabis”, lançado em português recentemente, o país está em processo de construção de uma política mais abrangente, mas ainda há muitos desafios a serem superados.

Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, Rolls defende as diferentes vozes da sociedade, incluindo as comunidades mais afetadas pela guerra às drogas, os usuários recreativos, associações, mas também empresários, médicos, juízes e membros de diferentes religiões que participem do processo.

“Nós podemos fazer algo diferente, melhor, aprendendo com os erros cometidos com o álcool e o tabaco. Nós podemos construir um mercado mais tangível, que inclua todas as nossas necessidades. As necessidades de pessoas que usam cannabis, dos negócios, do Estado, da polícia, do pessoal da saúde pública. É uma oportunidade incrível, é excitante e vocês devem abraçá-la”

Steve Rolls

HISTÓRICO REGULATÓRIO

A construção do atual cenário regulatório em torno da Cannabis medicinal ocorreu de forma gradual, mas nos últimos anos deu um salto significativo.

Em 2016, houve um avanço quando a Cannabis medicinal foi incluída na lista de substâncias especiais de controle da portaria 344, de 1998, do Ministério da Saúde, tornando mais fácil a importação de seus derivados.

No entanto, somente na edição 2017-2020 a Anvisa passou a priorizar esse tema em sua agenda regulatória. Foi também em 2017 que a agência aprovou o primeiro registro de um medicamento à base de Cannabis no Brasil, e em 2020, por meio da RDC 327 foi autorizado o primeiro produto de Cannabis.

Todo esse movimento regulatório possibilitou que o mercado brasileiro hoje tenha uma variedade de medicamentos específicos contendo CBD e THC em suas composições, incluindo fitoterápicos e fitofármacos, além de compostos importados.

Atualmente, estão disponíveis nas farmácias do Brasil 25 produtos, sendo 14 contendo canabidiol e 11 à base de extratos da planta Cannabis sativa.

Imagem explicativa, infográfico, sobre o uso do canabidiol e resoluções da Anvisa e do CFM.

Na contramão dos avanços

Neste mês de julho, a Anvisa alterou seu entendimento anterior e proibiu a importação da cannabis in natura, flores ou partes da planta. Isso sugere que esse avanço na abertura na regulação não será realizado de forma rápida.

Além disso, a Anvisa posicionou-se sobre quais profissionais de saúde seriam autorizados a prescrever certos produtos de cannabis. A posição da agência foi restritiva, permitindo apenas que médicos e dentistas façam tais prescrições.

A justificativa da nota técnica sobre o assunto considera que pode haver risco de desvio para fins ilícitos e pondera também a vigência de tratados internacionais de controle de drogas dos quais o Brasil faz parte.

A agência regulatória ainda afirma que inexistem evidências científicas robustas que comprovem a segurança da planta in natura.

Outras formas de administração da cannabis medicinal continuam sendo autorizadas pela Anvisa para importações, mas a proibição das flores representa um obstáculo para uma modalidade terapêutica que tem mostrado resultados significativos para os pacientes.

O uso das flores ampliou a variedade de produtos derivados da cannabis com fins medicinais, e atualmente, a prescrição dessa forma de administração é comum entre os médicos. Eles reconhecem que essa abordagem apresenta características benéficas para os pacientes, especialmente devido à rápida absorção dos canabinoides pelo organismo.

Cannabis no SUS

Assim como em diversos países ao redor do mundo, a utilização da cannabis medicinal mostra-se como uma vanguarda na busca por maior aceitação desse tema na sociedade brasileira, a qual tem se tornado mais consciente sobre os benefícios que ela pode proporcionar.

Desde que a Anvisa passou a autorizar a comercialização de produtos derivados da planta, aproximadamente 80 mil pacientes que receberam a devida permissão para utilizar esses medicamentos.

A indicação para o uso do canabidiol abrange doenças como: ansiedade, insônia, depressão, inflamações, doenças reumáticas, epilepsia, autismo, glaucoma, Alzheimer, Mal de Parkinson, esclerose múltipla e fibromialgia.

No entanto, apesar desse progresso, o custo elevado e a dificuldade em acessar o tratamento persistem, pois ainda é necessário recorrer à importação ou solicitar os produtos através do Sistema Único de Saúde.

Rodrigo Cariri de Almeida, coordenador-geral da Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, enfatizou que atualmente existem 28 projetos de lei em análise no Congresso Nacional relacionados a essa questão, os quais não foram debatidos pelo ministério na gestão anterior.

Agora, a instituição se dedicará à avaliação desses projetos e à discussão sobre a incorporação desses medicamentos no SUS em nível nacional, o que implica também revisar os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.

O desafio é incorporar não apenas uma substância para uma condição clínica específica, mas sim uma planta com várias possíveis formulações e diversas respostas clínicas potenciais. Para isso, será necessário debater sobre custos, financiamento, produção e cultivo.

De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), durante o segundo ao quarto trimestre de 2021, quando compostos mais baratos foram incluídos nas prateleiras das farmácias, as vendas triplicaram.

No entanto, mesmo com essa mudança, o tratamento ainda é considerado caro, conforme explica Carolina Sellani, coordenadora do Grupo de Trabalho de Insumos de Cannabis da associação.

“Nas farmácias, existem produtos que chegam a custar até R$ 2 mil, e os mais acessíveis estão na faixa de R$ 300 a R$ 400. Esse tipo de tratamento não é algo que se possa considerar comum”.

O viés mercadológico

Um estudo realizado pela Kaya Mind e divulgado em 2021 apresenta projeções para o mercado da cannabis no Brasil após quatro anos de uma regulamentação abrangente, que abarcaria todos os setores e envolveria uma produção de aproximadamente 33 toneladas anuais.

De acordo com as estimativas, o Brasil possui um vasto potencial para gerar um mercado anual de cerca de R$ 26 bilhões, englobando a indústria, o agronegócio e os usos medicinais e recreativos da cannabis. Desse montante, R$ 8 bilhões seriam revertidos em impostos, já que a comercialização da cannabis geraria uma arrecadação considerável, similar ao que ocorre com substâncias lícitas, como álcool e tabaco.

Na América Latina, o Brasil é um dos poucos países que não legalizaram o plantio para fins medicinais. Na Argentina, Equador, Uruguai, Colômbia, por exemplo, o cultivo já é legal. Segundo o Presidente da Associação Nacional do Cânhamo Industrial, Rafael Arcuri, a experiência de outros países mostra que a legalização só traz benefícios econômicos, industriais e para a saúde pública.

“Podemos de diferentes formas importar, a gente pode produzir, vender, temos uma indústria se estabelecendo, um comércio cada vez mais forte, que cresce 100% ao ano, de cannabis medicinal, mas não temos a possibilidade de produção nacional desses insumos”

Embora a judicialização tenha favorecido o uso medicinal da cannabis, outras duas frentes economicamente importantes relacionadas à cannabis são o uso adulto e recreativo, cuja desregulamentação pode beneficiar o tráfico internacional de drogas, e a vertente industrial e agrícola, como a indústria têxtil.

Atualmente, produtos à base da fibra, sementes e outras partes da planta ainda não são amplamente disponíveis no mercado, e a punição para os usuários ainda é objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal (STF).

O que são os canabinoides?

Dentre os canabinoides mais conhecidos, destaca-se o canabidiol (CBD), que ganhou popularidade nos últimos anos. O CBD é um dos principais componentes não psicoativos da cannabis e tem sido estudado por seus potenciais benefícios terapêuticos.

Sua utilização é ampla e abrange desde o tratamento de convulsões em pacientes com epilepsia até o alívio de sintomas de ansiedade e depressão.

• Full spectrum: contém mais de 60 substâncias da planta – é a forma plena do extrato do produto;
• Descarboxilada: possui as mesmas substâncias da versão full spectrum, mas em uma forma não ácida;
• Broad spectrum: forma sem THC, mas com todos os demais componentes da planta;
• Canabidiol isolado: contém exclusivamente o CBD em sua composição.

É importante ressaltar que o CBD não possui propriedades psicoativas, ou seja, não causa efeitos de euforia ou alterações na percepção da realidade. Isso o torna uma opção viável para aqueles que buscam os benefícios terapêuticos da cannabis sem os efeitos psicotrópicos associados ao tetraidrocanabinol (THC), outro canabinoide presente na planta.

O THC, por sua vez, é o responsável pelas experiências psicotrópicas do consumo da maconha – a famosa sensação de estar “chapado”. Além da ação psicoativa, ele também possui efeitos como estimulante do apetite, relaxante muscular, sedativo, analgésico e anti-inflamatório.

O THC tem o potencial de ser utilizado para combater as náuseas e vômitos decorrentes de quimioterapia, além de ter efeito positivo no humor em quadros depressivos.

Cannabis: um campo de disputas ideológicas

Enquanto o CBD é mais aceito por suas propriedades medicinais, o THC é criticado por provocar alterações temporárias na percepção, coordenação motora e memória. Apesar disso, as alegações sobre danos cognitivos permanentes, overdose e dependência ainda são objeto de contestação entre pesquisadores e especialistas médicos.

A questão da Cannabis vai além de meras disputas ideológicas. É importante tratar o tema sob uma perspectiva de acesso à saúde, ciência, remédios e economia. Nas discussões recentes na Câmara e no Senado, o campo mais progressista critica a influência de interesses conflitantes da indústria farmacêutica e do agronegócio na formulação de versões distorcidas sobre a substância.

“O uso da cannabis medicinal é uma questão de saúde pública urgente, civilizacional, não há motivo para que haja uma regulamentação plena ainda no nosso país. Vários médicos podem prescrever e isso precisa ser consolidado imediatamente, mas também é uma forma da sociedade perceber o quanto essa lógica da criminalização é uma irracionalidade. Se o debate é útil para algumas pessoas por determinadas doenças, ela também pode ser útil para muitos jovens negros das periferias brasileiras que são presos injustamente, que são vítimas da repressão policial”

Deputada Sâmia Bonfim

A falta de uma legislação clara impede o desenvolvimento e investimentos no setor, deixando o país em atraso em relação a importantes avanços científicos que comprovam a eficácia dos medicamentos à base da planta para diversas doenças e condições.

Além disso, a ausência de medidas concretas e segurança jurídica coloca em risco o desenvolvimento dessa área no Brasil, podendo levar investimentos a migrarem para países vizinhos com melhores condições legais e regulatórias.

Enquanto isso, pesquisas apontam altos percentuais de apoio da população à fabricação de remédios à base de Cannabis pela indústria farmacêutica e à distribuição gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS).


Simone Machado é mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (UERJ) e parte da equipe editora da Revista Pluriverso.

Para elaboração desta matéria foram utilizadas as seguintes fontes:

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