ISSN 2764-8494

ACESSE

Artes
Seu tempo de leitura: 4 minutos

Psicopatologia e Literatura Ep.4: O desamparo de Emma Bovary

A série de Podcast Psicopatologia e literatura idealizada por Adriana Costa agora na revista Pluriverso. Você pode acompanhar aqui, no seu app de podcast preferido ou no blog da Dri. Porque aqui é assim, partilhado, diverso e colaborativo.

Por Adriana Costa

Ela empalidecia e tinha precipitações cardíacas. Charles ministrava -lhe valeriana e banhos de cânfora. Tudo que se experimentava parecia irritá-la ainda mais.Em certos dias conversava com uma abundância febril, a essas exaltações sucediam -se de repente, torpores em que ficava sem falar, sem se mover. O que a reanimava era derramar no braço um vidro de água-de-colônia”

p. 151

O livro conta o processo crescente de desilusões de uma jovem, suas expectativas com o casamento, maternidade, com a vida social e familiar não correspondem à sua imaginação e ela segue de cidade em cidade, um ciclo de: entusiamo – obsessões – realização – decepção – tédio – torpor

“Nada, aliás, valia a pena de uma procura; tudo mentia! Cada sorriso escondia um bocejo de tédio, cada alegria uma maldição, cada prazer o seu desgosto, e os melhores beijos não deixavam nos lábios senão uma irrealizável vontade de uma volúpia mais alta”
Emma despreza o seu cotidiano, ou nas palavras de Flaubert ela
“vagamente pasmava nessa calma das coisas, enquanto tinha em si mesma tanto transtorno”

e com o decorrer do tempo,  esta angústia a impede de realizar até seus pequenos afazeres de costura, música ou leitura.

“Ela se irritava com um prato mal servido, ou com uma porta entreaberta, gemia pelo veludo que não tinha, pela felicidade que lhe faltava, pelos seus sonhos demais elevados, pela casa pequena demais. O que a exasperava era que Charles não parecia perceber o seu suplício…” 

p.201

Esta hipersensibilidade é indicadora da falta de um espaço próprio, íntimo.  Emma está ao alcance imediato das coisas do mundo que a penetram agudamente. E quando finalmente encontrava algo de seu agrado, criava uma dinâmica de enfado. 

” quanto mais próxima lhe ficavam as coisas, mais seu pensamento se afastava delas”.

“Não estava feliz, nunca tinha estado. De onde vinha então essa insuficiência da vida, essa podridão instantânea das coisas 
em que ela se apoiava ? ” 

p.408

Emma não consegue constituir uma geografia vital, um “chez moi”, instância consigo mesma que possibilite um sossego, uma pertença sentida da pessoa a respeito de algo, um vínculo. Emma está sem pouso e consequentemente sem repouso.

“No fundo da alma, entretanto ela esperava um acontecimento. Como os marujos em perigo ela passeava sobre a solidão de sua vida os olhos desesperados, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte”

 p.146

Tem a necessidade de uma outra vida, que não a sua e que está fora do seu horizonte de possibilidades,  algo que tenta alcançar sem conseguir nunca . Isso implica uma temporalidade ansiosa um contínuo movimento de pura intranquilidade. Emma não encontra um lugar para ser e tenta suprir esta falta com objetos e sensações momentâneas do ter, estes êxtases fugazes que lhe deixam exausta.

“Depois sofria uma grande queda e tudo se despedaçava; porque aqueles impulsos de amor vago a fatigavam mais que a lascívia da libertinagem. Sentia agora um cansaço enorme, incessante e universal. Muitas vezes, mesmo, Emma recebia citações, papel selado, para os quais mal olhava. Quisera não viver, ou dormir continuamente”

O sofrimento dela é palpável, suas tentativas de realizar uma geografia vital, um lugar onde possa existir, termina numa ausência de chão – no abismo do suicídio.

“O chão debaixo de seus pés estava mais mole do que uma onda de água, e  os sulcos lhe pareceram imensas vagas escuras que desabam. Tudo que havia em sua cabeça de reminiscências, de idéias, escapava a uma só vez, num ´único salto, como as mil peças de um fogo de artifício …” 

p.437

Escutar seu desamparo e não buscar rapidamente respostas na sociologia, que justifiquem em categorias gerais da condição da sociedade burguesa, no papel da mulher em sua época é um exercício de atenção ao particular. Sabemos da influência deste contexto mas a busca é por esta dificuldade que o ser humano tem de pousar na realidade, independente de qual seja esta sociedade, a dificuldade com a força do real.

A inquietude faz parte deste fazer-se , constituir o sentido de sua vida. Viver implica não somente uma ato físico mas um esforço contínuo de capacitação para a vida. Nos embates com as circunstâncias o homem vai gerando formas pessoais e compreensivas de si e do mundo. O ser humano tem de opor-se a complexidade da sua vida para absorve-la energicamente na superior simplicidade da pessoa. Na medida que se é incapaz de realiza-lo, é se também incapaz de existir como pessoa realizada. Esta dificuldade é a base do frenesi exaustivo e desalentador de Emma, o suplício de não conseguir constituir uma intimidade vital.

O que vemos no livro é uma total falta de amparo, simbolicamente espelhada, no personagem do mendigo cego andrajoso e cheio de chagas . Sua deterioração física a enoja e ele a perturba no primeiro encontro, quando lhe dá uma esmola, se esquivando de sua imagem deteriorada, na lembrança dos instantes de felicidade vividos com León. No último encontro o mendigo cego é apenas uma voz, mas é ele quem articula na hora de sua morte os versos de uma canção que sintetizam o seu fado.

Às vezes um dia de calor. Faz sonhar mocinha co’amor. Pra recolher rapidamente  as espigas ceifadas já, minha Nanette vai pendente para o sulco que no-las dá.
– O Cego ! – exclamou ela
E Emma pôs -se a rir, com um riso atroz, frenético, desesperado, acreditando ver a face horrenda do miserável ,que se erguia das trevas eternas como algo de espantar.
Nesse dia, forte soprou,
E a saia curta voou! 

p. 451-452 

Utilizamos a tradução de Mario Laranjeira neste artigo.

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