ISSN 2764-8494

ACESSE

Socioambiental
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Calamidade pública anunciada em Bailique

Escrito por Amelia Gonzalez

São 220 quilômetros de barco pelo Rio Amazonas até chegar ao Arquipélago do Bailique, no Amapá. São dez, às vezes mais horas, de uma viagem nem sempre tranquila, dependendo muito do humor do maior rio do mundo. A travessia pode começar por Belém ou por Macapá, mas se até cinco, seis anos atrás, os viajantes tinham um porto seguro para atracar, em pelo menos duas das 50 comunidades que ocupam as oito ilhas do Arquipélago, hoje não há píer de atracação. O fenômeno das terras caídas, causado pelo assoreamento do Rio Araguari (único rio totalmente amapaense) já destruiu uma, duas vezes, não só o píer como 700 casas de moradores, escolas e outros prédios públicos no Arquipélago.

Este é apenas um dos problemas enfrentados pelos cerca de dez mil moradores (o último censo, feito em 2010, registrou 7,6 mil) do Bailique. Uma das destruições de maior impacto na região foi a da linha de transmissão de energia, que submete os moradores a um apagão sem fim. Caem os postes, a denúncia é feita, muitos dias depois chega lá uma equipe e ergue os postes no mesmo lugar de antes, ou seja, prontos a cair de novo. Não há planejamento para enfrentar a situação.

A salinização da água do rio é outra questão, em virtude do avanço das águas do mar, que já está prejudicando não só a agricultura familiar como o fornecimento de água potável para a população.

Imagem de Amelia Gonzalez referente a calamidade pública no Bailique.

Na sexta-feira 13 de agosto, uma audiência pública virtual convocada pelo deputado Camilo Capiberibe (PSB/AP), da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara, pôs o tema em debate, levantou a necessidade de se construir políticas públicas para aquela população. Dois pesquisadores, um representante da Aneel e o responsável pelo Conselho Comunitário do Bailique, compareceram e expuseram essas e outras questões. Os representantes das hidrelétricas Coaracy Nunes (Eletronorte), Caldeirão e Ferreira Gomes foram convidados, mas não compareceram. O Governo do Estado, também convidado, igualmente não deu importância à audiência.

Com uma economia baseada na pesca, na agricultura familiar, na extração vegetal (oleaginosas, açaí, pracaxi e andiroba), o Bailique é, também, um legítimo representante do Brasil profundo. E traz o selo do menosprezo do poder público, cuja ausência é sentida diariamente pelos contribuintes que moram na região. A falta de regulação e fiscalização nas fazendas que criam búfalos, cujas pesadas pegadas estão abrindo igarapés na região, ajudando o assoreamento do rio, é apenas outra consequência disso.

Danilo Capiberibe informou que o governo municipal de Macapá, assim como o estadual serão, mais uma vez, alertados das privações a que estão sendo submetidos os bailiquenses.  E vai ser pedido que seja decretado o estado de calamidade pública na região.

Paulo Motta Rocha, presidente do Conselho Comunitário do Bailique, 66 anos vividos no Arquipélago, levou para a audiência o drama, o pedido de socorro.

“Em quase todos os desastres da natureza que ocorrem no planeta, os primeiros socorros são para as pessoas, elas são ajudadas com novas moradias, gêneros de primeira necessidade. No Bailique isto não correu, nem ocorre”, disse ele.

Paulo tem uma memória bem viva de quando, em meados da década de 70, pescava no Araguari ainda quando o rio tinha seu curso natural, sem ter sido desviado pelas três hidrelétricas que se instalaram nos quase 700km de seu leito a partir de 1975. Reparem no contrassenso: a comunidade se vê impactada pela construção de três hidrelétricas e sofre de apagões diários. É o cartão postal do nosso tempo, uma amostra clara de que o desenvolvimento atualmente defendido por líderes de nações e de empresas é insustentável e tem beneficiado a poucos.

“Sabemos que o processo não vai parar, não temos mais como voltar atrás no desastre que está ocorrendo não só por conta da ação do homem como das mudanças climáticas. Mas nós temos como empreender ações que socorram aquelas pessoas. Não queremos ser reconhecidos apenas como moradores da região, mas como trabalhadores da agricultura familiar, como homens do campo, como plantadores de alimentos, como consumidores, como contribuintes do Fisco Nacional. Nós consumimos produtos industrializados, pagamos impostos”, disse Paulo.

A partir de 2015 começou a ser notado o processo acentuado de erosão, que os habitantes apelidam de “fenômeno das terras caídas”.  Mas já no início do século, em 2002, pesquisadores apontaram a necessidade de se fazer este monitoramento, pedido menosprezado. Também presente na audiência, a pesquisadora, geóloga e professora do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá, Waldenira Ferreira dos Santos, é também uma pessoa indignada com o que está ocorrendo no Bailique.

“Fala-se muito sobre as questões da Amazônia floresta, sobre o desmatamento. Mas não se fala sobre a Amazônia água. O aumento do nível do mar aumenta a erosão e afeta todas as populações que estão nas áreas costeiras. Estou falando de cerca de três milhões de pessoas que vivem na Foz do Amazonas. Isto afeta, inclusive, a economia local, já que se depende das águas do rio para tudo”, disse ela.

A denúncia, nesse caso, é da falta de investimento do poder público em pessoal para fazer esses estudos e trabalhar junto com os engenheiros que estão à frente dos empreendimentos. É como se não existissem pessoas morando ali, é como se fosse possível ocultar os impactos em vez de enfrentá-los e minimizá-los.

“Temos que parar de fazer de conta e dar atenção que a Foz do Amazonas merece. Não temos pessoal para fazer pesquisas, não temos dinheiro para manter as pesquisas. Vou a campo com meu dinheiro e recebo a ajuda da comunidade para trabalhar. Estão fazendo intervenções sem informações Geóide (sobre elevação do nível do mar). A região precisa de levantar dados científicos, mas não temos nem estação meteorológica na Foz do Amazonas”, disse a pesquisadora.

Não é de hoje que o debate está na mesa, lembra Waldenira dos Santos. Há cerca de vinte anos o cenário começou a ser traçado, mas as ações continuam até hoje no papel.

“Não se traça cenários sem dados, sem monitoramento. Tem que ter um grupo de planejamento integrado, porque as comunidades e a economia vão continuar sofrendo. Está na hora de agir, de trabalhar integrados com engenheiros, Aneel, empresas, poder público, população, para ver o que pode ser feito. Mas a comunidade precisa ocupar um lugar importante nesse debate porque ela, mais do que ninguém, sabe de suas privações e consegue apontar caminhos”, disse Waldenira.

Cartão postal da era de contradições

Imagem de Amelia Gonzalez referente a calamidade pública no Bailique.

Quando se viaja dez, doze horas pelo Rio Amazonas, a maioria do tempo à noite, a expressão “Brasil profundo” se materializa. Há igarapés, caminhos de terra, pequenas ilhotas. Quem anda por ali, de dia ou à noite, é porque conhece os caminhos, sabe se livrar dos perigos, sabe negociar e tem intuição, sentimento há muito abandonado pelos citadinos. Não há pranchetas ou computadores de última geração que substitua este saber. Só mesmo com parceria entre ciência e saber tradicional, dando a ambos o mesmo peso,  é possível dar certo.

Estive duas vezes no Bailique (em 2014 e 2015), fazendo reportagem sobre o processo de produção do Protocolo Comunitário, exigência do Tratado de Nagoya, do qual o Brasil é signatário.

Valeu a pena ter ido. Foram as duas viagens mais lucrativas que fiz em minha vida profissional. Aprendi muito, saboreando a prática de toda a teoria que eu já vinha acumulando desde que comecei a pesquisar sobre o tema desenvolvimento sustentável. O Bailique é rico, extremamente rico em bens naturais. E sua população vive, muitas vezes, na linha da pobreza. Esta é a contradição denunciada por nove entre dez autores que se dedicam a pesquisar mais profundamente o drama de nosso modelo civilizatório.

‘Há quarenta anos que o mundo vive dominado pela ideia de que não há alternativa à sociedade atual, ao modo como está organizada e como organiza as nossas vidas […] Esse bloqueio de alterativas ocorreu de par com a ideia de que isso era a plena realização do progresso […] Mas afinal, que mundo suportava este presente eterno? Era um mundo que quanto mais ‘progresso’ realização mais intolerável e inabitável se tornava para a grande maioria da população mundial” (Boaventura de Sousa Santos em “O futuro começa agora” – Ed. Boitempo – 2021).

“Se a busca pelo lucro continuar sendo a força motriz, estaremos condenados […] algo bem diferente poderia vir à tona: talvez valores comuns, como a ajuda mútua e a preocupação com uma vida plena de significados e realizações em lugar da acumulação de recursos em benefício próprio e o enriquecimento de quem tiver capital para investir”. (Noam Chomsky em Crise Climática e o Green New Deal Global – Ed. Roça Nova – 2021).

As ruas são pontes de madeira porque a área é de várzea. O ar é limpo. Os bichos são soltos (incluindo os cachorros). As pessoas são doces, gostam de falar de si e das mazelas do lugar que habitam, causada pelos desmandos governamentais.

 O processo de organização do Protocolo Comunitário, alavancado por Rubens Gomes (falecido em maio do ano passado, meu anfitrião nas duas viagens), então diretor executivo da Oficina Escola de Lutheria da Amazonia (Oela) e presidente da Rede Grupo de Trabalho Amazônia (GTA) foi uma experiência de organização societária. Em pranchetas confeccionadas com material resistente à água, os pesquisadores se reuniam com pequenos grupos de moradores e propunham debates sobre um modelo de vida em comum que não impactasse os moradores nem o meio ambiente. É possível, sim.


Quem quiser saber mais a respeito desse trabalho pode acessar os textos que escrevi para a minha coluna, à época sitiada no Portal G1 .


Para se envolver mais com conteúdos relacionados ao texto, você pode acessar os fóruns da Pluriverso e abrir um novo debate dentro da curadoria de conteúdo Socioambiental.

* Amelia Gonzalez é Jornalista, há cerca de duas décadas especializada no tema desenvolvimento sustentável. Em 2003 ajudou a criar o “Razão Social”, suplemento do jornal “O Globo”. Foi a única editora do caderno, que circulou durante nove anos. Em 2013, foi convidada a escrever uma coluna sobre o tema no G1, o portal da Globo. A coluna se chamou “Nova Ética Social” e esteve no ar durante sete anos.
Atualmente mantém o blog Ser Sustentável e Colabora solidariamente com a Revista Colaborativa Pluriverso.

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