ISSN 2764-8494

ACESSE

Volume II
Seu tempo de leitura: 5 minutos

Uma vitória democrática incompleta e seus desafios

Por Cândido Grzybowski

O primeiro turno das eleições, no domingo, 2 de outubro, provoca muitas avaliações e reflexões, o que em si é fundamental para revitalizar a democracia ameaçada. Mas, de imediato, considero necessário ter presente os ganhos e os enormes riscos que estamos vivendo e que a eleição, a seu modo, revela. Vou me limitar a destacar alguns como uma contribuição parcial para o necessário aprofundamento e enfrentamento  que exigem.

1. Diante das ameaças explícitas à institucionalidade democrática, particularmente ao exercício do voto livre e à sua apuração pelo TSE, bem como quanto à lisura dos resultados, vale a pena reconhecer que, apesar de tudo, não houve tumulto. Pelo contrário, a votação ocorreu num clima de celebração cívica e de muita cordialidade, apesar da polaridade que a moveu e que se configurou nos resultados. No clima político que vivemos no Brasil sob o bolsonarismo, com pregação de violência e rearmamento da população, com ódio e intolerância aos adversários e diferentes, gestou-se um clima de medo que não se refletiu nas aglomerações e lentas filas para votar, ao longo do dia. Foi um dia mais de expressão cidadã, sem medo. Sim, uma celebração tímida, mas estampada no semblante das pessoas como alívio. Parece algo insignificante, mas não foi nos tempos atuais de ameaças de fascismo. A institucionalidade democrática ainda é uma garantia e podemos contar com ela… por enquanto.

2. Os resultados do primeiro turno mostram o quão profunda e ampla é a fratura da  polaridade que estará presente no poder estatal e como ela se espelha na institucionalidade política que temos, bem além da Presidência. É suficiente ver os resultados para Senado e Câmara de Deputados, Governos Estaduais e Câmaras Legislativas. Quem não optou pela polarização que está implantada perdeu muita legitimidade em termos de votos. Basta lembrar aqui a derrocada do PSDB, como caso emblemático disto. Ou seja, sendo claro, a proposta autoritária fincou raízes e vamos tê-la como ameaça por um período muito longo.  De outro lado, o polo que aposta na proposta de mais democracia tem uma gigantesca tarefa de disputa de hegemonia, que de jeito nenhum acabará com a eleição, mesmo até tendo demonstrado capacidade e vencendo no primeiro turno, com melhores chances de vencer no segundo. O sonho dos anos 80 de século passado está comprometido e precisamos revitalizá-lo. Estamos preparados para isto? O bloco constituído para derrotar o autoritarismo pela via eleitoral tem consistência e vontade política para tanto? Levanto a hipótese que a ditadura faz parte do tudo pelo mercado. Portanto, a grande hegemonia capitalista neoliberal é que está levando a humanidade e o planeta ao desastre logo ali. A versão autoritária e fascista é condição para a continuidade de sua hegemonia, em benefício dos tais 1%.

3. Aqui cabe uma melhor avaliação das “ausências” na eleição do último domingo. É muito preocupante o índice de em torno de 20% de abstenções no primeiro turno. Isto vem acontecendo no ciclo eleitoral pós Constituição de 1988. O problema é que sabemos pouco ou nada a respeito. Quem são os que se abstiveram de votar, mesmo com uma polarização tão evidente? Por que não votam? Algo os impede ou se trata de uma opção? Precisamos levar em conta que a fratura política que está se consolidando entre nós tem por trás uma estrutura de relações e processos geradores de muita desigualdade e destruição ecossocial. O direito de cidadania é igual, mas a sociedade está longe de ser igual. Como a polarização revelada atua entre os “ausentes”, que não comparecerem para votar? A minha hipótese, particularmente neste processo eleitoral, é a diferença de ativismo nas suas bases. Tanto nas ruas como na comunicação, tivemos mais ativismo da direita autoritária do que de nosso lado. Ouso dizer que as “abstenções” podem ser a explicação para o apertado resultado da vitória em torno do bloco do Lula, pois não houve um chamado à militância cidadã com a  intensidade e visibilidade necessárias. A direita e seus acólitos é que deram a cara. As pesquisas de intenção de voto se limitam a considerar a possibilidade de voto nulo ou em branco. Nunca se perguntou às pessoas se irão votar ou não votar, e o porquê. Afinal, esta é uma informação democrática essencial. Sempre considero as ruas, os imaginários e as emoções como  espaços mais estratégicos na construção de hegemonia democrática. Ainda há tempo para começar a reverter isto, pois penso que a proposta democrática tem mais chance entre os não mobilizados a votar, que o bloco oposto esgotou sua capacidade. Lembro só que o medo se instalou entre nós e não no grupo do polo oposto. O medo pode inibir o desejo de exercer cidadania.

4. Nesta altura cabe destacar como vejo a vitória no primeiro turno. Ela é positiva para mostrar ao outro bloco os limites e as barreiras políticas às suas pretensões autoritárias. Porém, sejamos claros: está em jogo na eleição a própria ideia de democracia ameaçada pela proposta autoritária que mostrou força. Defender a democracia, nesta hora, é muito mais importante do que propostas de governo e de políticas. Acho que a ideia de “cuidado democrático com as pessoas”, em sua diversidade, como titulares de direitos iguais de cidadania, que o Lula apresenta,  tem mais potencial de mobilização frente ao autoritarismo do que as propostas de políticas que fará,  uma vez no  governo. Não se trata de escolher o melhor em termos de prover políticas, mas de escolher para nós e gerações futuras entre democracia includente com justiça ecossocial ou fascismo excludente, violento e destruidor. A vitória é incompleta pois falta o segundo turno, sem dúvida. Mas o que já está estabelecido pela polarização nas estruturas de poder, mostra a fragilização da proposta democrática e do esforço gigantesco que teremos para voltar a avançar democraticamente num horizonte mais longo.

5. Uma dimensão que considero fundamental diante do desafio que temos é o que chamo de “imaginário mobilizador”, capaz de gerar e alimentar movimentos de cidadania ativa, democratizadores e irresistíveis. Precisamos de muita convicção e garra na afirmação e na disputa política em torno a princípios e valores éticos frente a um discurso fascistoide, violento, racista, patriarcal e homofóbico, em nome de “Deus, Pátria e Família”, colonizador e destrutivo do grande bem comum natural que compartimos. Já sabemos o quanto de guerras, devastação e morte tem causado  para a humanidade todas as propostas com tal mote.

Como conclusão, estes são apenas alguns pontos preliminares a por em debate público para o bloco democrático, visando fortalecê-lo no imediato e no mais longo prazo. Tive a oportunidade de examinar excelentes análises nestes dias. Minha  intenção é somar  e estar junto frente aos desafios que temos no imediato, agora no pouco tempo para consolidar a vitória eleitoral no segundo turno, mas sem deixar de pensar nas tarefas que nos estamos dando para o período mais longo, que está sendo inaugurado nestes dias. 

Cândido Grzybowski é sociólogo, vice-presidente do CECIP.


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